“…mais uma vez tinha decepcionado, sem
consciência de o ter feito. Mais uma vez, a desilusão na cara das pessoas com
quem vivia. Não havia nada ali…quem eram? Quem eram aquelas pessoas que todos
os dias via, pouco falava mas eram as que mais gostava? Não havia já nada ali…
Eram cinco da manhã e todos ainda dormiam.
Pôs a mochila às costas e saiu sem fazer barulho. Começou por andar a passo
pequeno, mas mal deu por si corria…corria com toda a força que tinha, até o ar
não resistir…corria…corria…
Em pouco tempo estava na cidade grande. Sentou-se
num degrau de uma casa para pensar…para onde ia? Fazer o quê? Afinal, não tinha
dinheiro…amigos…emprego…carro…apenas a mochila com meia dúzia de roupitas. Qual
o objetivo? Bem, primeiro beber água da fonte que tinha quase á sua frente.
Depois, arranjar algo pra comer. Como?? Seria problema sem dinheiro. E depois,
encontrar-se…isso mesmo. Viver para si…
Pensando positivo e em modo aventura, Amélia
entrava nos autocarros e nos comboios disfarçadamente, doutra maneira era
impossível. Não tinha um cêntimo …
Conseguiu chegar a Lisboa, a capital! E
agora? Não conhecia ninguém…sentou-se num muro a olhar o movimento da cidade.
Encontrava-se na Praça de Espanha e caminhando uns bons metros resolveu
descansar. Olhando para ver onde ia sentar-se avistou algo que lhe agradava, o
Museu Calouste Gulbenkian.
-uauuh! Vou ver o Museu da Gulbenkian…- falou
alto e rodopiou de alegria. Tal que despertou a atenção de um senhor de 50 anos
que sorrindo a chamou.
-menina! Chegue aqui, menina!
Envergonhada parou. Timidamente chegou perto
do senhor…conclusão?
-Bom dia Sr. Alfredo! É muito cedo? Dormi
aqui mesmo…e pensei vir já…
Abanando a cabeça em negação o Sr. Alfredo
repeliu-a:
- Amélia, isso não pode ser! Não podes dormir
na rua. Tens de estar apresentável a partir de…agora! Ouviste? Estou a dar-te
uma oportunidade.
Sr. Alfredo era o gerente da empresa de
limpeza e foi o 1º a ajudar Amélia. Durante seis meses, este senhor mostrou a
esta menina perdida todos os caminhos, estradas e veredas que teria de
percorrer para a caminhada da vida. Assim, 8 meses depois Amélia tinha um
ordenado, vivia num quartinho perto do Museu, pagava as suas despesas e
satisfazia seus hobbies. Lia quando queria e o que queria, ia ao cinema sempre que
lhe apetecia, participava em festas e o que mais lhe agradava começou por
ajudar nos teatros que faziam. Sim, os colegas de trabalho desafiaram-na a vir
um dia ver e …Amélia conseguia saber todas as deixas de quase todos os
personagens. Figurante era a sua participação mas era feita de tal forma que despertou
o interesse do ensaiador. Assim que houve oportunidade Amélia foi convidada
para uma personagem, não era a principal, mas era como se fosse. Chorou de
emoção todo o dia….Nem acreditava!
Uma noite, quase próxima do grande evento
Amélia começou a ficar pensativa. Estava tão contente, tão deslumbrada que
apercebeu-se que só ela tinha acesso a esse sentimento. Parece que ia rebentar
de tanta alegria e ansiedade. Talvez fosse também do cansaço, mas gostava de
contar tudo o que lhe ia na alma às pessoas de quem gostava. O tio, as duas
primas, a amiga de sempre e até a vizinha…todas aquelas pessoas que sempre lhe
ralharam, sempre a metiam em baixo, mas de quem ela tinha saudades agora. Ainda
se lembra da vizinha Aurora ralhar com ela por lhe roubar um vaso e plantar
numa altura imprópria uma roseira…lembra-a com saudades.
Nessa noite, Amélia chorou de saudades e
angústia. Não estava arrependida por ter lutado por uma vida melhor, mas o
preço era muito alto e não sabia se aguentaria muito tempo a paga-lo! No dia da
estreia, para quem iria sorrir?? Tinha o Sr. Alfredo, a Joana, a Célia e o
Gustavo…mas não conhecia a sua infância. Não tinha seu sangue. Tinha-lhe sim
agradecimento. Eram boas pessoas…
Chegou o dia…
-vamos lá rapaziada! Por favor, com calma…quero
que estejam tranquilos. É apenas uma peça, se houver enganos ou esquecimentos
continuem. Ajudem-se uns aos outros. Partilhem o que aprenderam e sorriam…sempre!
Muita MERDA!- O ensaiador desejava a muita sorte a todos.
Luzes e mais luzes, concentração e mais
decoração, falas e movimentos e os tão esperados aplausos! Como é hábito, os atores
voltaram uma segunda vez ao palco para agradecer…e foi nessa altura que….Amélia!
Aconteceu tudo tão de repente. Amélia enquanto estava em palco não via nada da
plateia devido aos holofotes, apenas quando terminou o espectáculo é que viu na
1ª fila todos aqueles que tão chorados tinham sido durante algumas noites.
Quando a vizinha Aurora a chamou e lhe atirou uma rosa, daquelas que impropriamente
plantadas por Amélia tinha pegado. Ao mesmo tempo que a rosa caia no chão
também Amélia, de tão imprópria e malfadada que era sua vida!
Amélia apenas sorriu e com a rosa na mão
disse para todos que estavam ajoelhados no palco junto a si:
- Obrigado por terem vindo! Mas…vou partir…outra
vez…outra vez e para sempre! Não compensa estar longe de quem gostamos, não
mereço a vida…longe de vocês! Amo-vos…e percebi o quanto vocês também…a mim…percebi…percebi!
Amélia falecera ali mesmo naquela hora…viveu
tudo o que queria ter vivido. SOZINHA!
“outra maneira de escrever”
Rosália Dias