terça-feira, 23 de junho de 2015

Outra maneira de escrever...

“…mais uma vez tinha decepcionado, sem consciência de o ter feito. Mais uma vez, a desilusão na cara das pessoas com quem vivia. Não havia nada ali…quem eram? Quem eram aquelas pessoas que todos os dias via, pouco falava mas eram as que mais gostava? Não havia já nada ali…
Eram cinco da manhã e todos ainda dormiam. Pôs a mochila às costas e saiu sem fazer barulho. Começou por andar a passo pequeno, mas mal deu por si corria…corria com toda a força que tinha, até o ar não resistir…corria…corria…
Em pouco tempo estava na cidade grande. Sentou-se num degrau de uma casa para pensar…para onde ia? Fazer o quê? Afinal, não tinha dinheiro…amigos…emprego…carro…apenas a mochila com meia dúzia de roupitas. Qual o objetivo? Bem, primeiro beber água da fonte que tinha quase á sua frente. Depois, arranjar algo pra comer. Como?? Seria problema sem dinheiro. E depois, encontrar-se…isso mesmo. Viver para si…
Pensando positivo e em modo aventura, Amélia entrava nos autocarros e nos comboios disfarçadamente, doutra maneira era impossível. Não tinha um cêntimo …
Conseguiu chegar a Lisboa, a capital! E agora? Não conhecia ninguém…sentou-se num muro a olhar o movimento da cidade. Encontrava-se na Praça de Espanha e caminhando uns bons metros resolveu descansar. Olhando para ver onde ia sentar-se avistou algo que lhe agradava, o Museu Calouste Gulbenkian.
-uauuh! Vou ver o Museu da Gulbenkian…- falou alto e rodopiou de alegria. Tal que despertou a atenção de um senhor de 50 anos que sorrindo a chamou.
-menina! Chegue aqui, menina!
Envergonhada parou. Timidamente chegou perto do senhor…conclusão?
-Bom dia Sr. Alfredo! É muito cedo? Dormi aqui mesmo…e pensei vir já…
Abanando a cabeça em negação o Sr. Alfredo repeliu-a:
- Amélia, isso não pode ser! Não podes dormir na rua. Tens de estar apresentável a partir de…agora! Ouviste? Estou a dar-te uma oportunidade.
Sr. Alfredo era o gerente da empresa de limpeza e foi o 1º a ajudar Amélia. Durante seis meses, este senhor mostrou a esta menina perdida todos os caminhos, estradas e veredas que teria de percorrer para a caminhada da vida. Assim, 8 meses depois Amélia tinha um ordenado, vivia num quartinho perto do Museu, pagava as suas despesas e satisfazia seus hobbies. Lia quando queria e o que queria, ia ao cinema sempre que lhe apetecia, participava em festas e o que mais lhe agradava começou por ajudar nos teatros que faziam. Sim, os colegas de trabalho desafiaram-na a vir um dia ver e …Amélia conseguia saber todas as deixas de quase todos os personagens. Figurante era a sua participação mas era feita de tal forma que despertou o interesse do ensaiador. Assim que houve oportunidade Amélia foi convidada para uma personagem, não era a principal, mas era como se fosse. Chorou de emoção todo o dia….Nem acreditava!
Uma noite, quase próxima do grande evento Amélia começou a ficar pensativa. Estava tão contente, tão deslumbrada que apercebeu-se que só ela tinha acesso a esse sentimento. Parece que ia rebentar de tanta alegria e ansiedade. Talvez fosse também do cansaço, mas gostava de contar tudo o que lhe ia na alma às pessoas de quem gostava. O tio, as duas primas, a amiga de sempre e até a vizinha…todas aquelas pessoas que sempre lhe ralharam, sempre a metiam em baixo, mas de quem ela tinha saudades agora. Ainda se lembra da vizinha Aurora ralhar com ela por lhe roubar um vaso e plantar numa altura imprópria uma roseira…lembra-a com saudades.
Nessa noite, Amélia chorou de saudades e angústia. Não estava arrependida por ter lutado por uma vida melhor, mas o preço era muito alto e não sabia se aguentaria muito tempo a paga-lo! No dia da estreia, para quem iria sorrir?? Tinha o Sr. Alfredo, a Joana, a Célia e o Gustavo…mas não conhecia a sua infância. Não tinha seu sangue. Tinha-lhe sim agradecimento. Eram boas pessoas…
Chegou o dia…
-vamos lá rapaziada! Por favor, com calma…quero que estejam tranquilos. É apenas uma peça, se houver enganos ou esquecimentos continuem. Ajudem-se uns aos outros. Partilhem o que aprenderam e sorriam…sempre! Muita MERDA!- O ensaiador desejava a muita sorte a todos.
Luzes e mais luzes, concentração e mais decoração, falas e movimentos e os tão esperados aplausos! Como é hábito, os atores voltaram uma segunda vez ao palco para agradecer…e foi nessa altura que….Amélia! Aconteceu tudo tão de repente. Amélia enquanto estava em palco não via nada da plateia devido aos holofotes, apenas quando terminou o espectáculo é que viu na 1ª fila todos aqueles que tão chorados tinham sido durante algumas noites. Quando a vizinha Aurora a chamou e lhe atirou uma rosa, daquelas que impropriamente plantadas por Amélia tinha pegado. Ao mesmo tempo que a rosa caia no chão também Amélia, de tão imprópria e malfadada que era sua vida!
Amélia apenas sorriu e com a rosa na mão disse para todos que estavam ajoelhados no palco junto a si:
- Obrigado por terem vindo! Mas…vou partir…outra vez…outra vez e para sempre! Não compensa estar longe de quem gostamos, não mereço a vida…longe de vocês! Amo-vos…e percebi o quanto vocês também…a mim…percebi…percebi!
Amélia falecera ali mesmo naquela hora…viveu tudo o que queria ter vivido. SOZINHA!
“outra maneira de escrever”

Rosália Dias